Fui convidada para a difícil missão de escrever sobre minha experiência na posição de comando de uma jovem promissora profissional portadora de deficiência auditiva, que hoje, é também uma grande e querida amiga.
À priori a ideia era de versar sobre as experiências que ela, como portadora de deficiência viveu no escritório que compartilhamos por quase quatro anos. Porém, ao longo de quase três meses em que me debati em frente ao computador, percebi que, minha maior dificuldade, estava no foco que ela havia me pedido para descrever. Eu jamais poderia falar sobre as possíveis dificuldades sob a ótica de uma pessoa com alguma deficiência física pois não é meu lugar de fala. Posto isso, percebi que a melhor maneira de compartilhar essa experiência seria dividindo um pouco de minha percepção na posição de superior hierárquica, a respeito das dificuldades e superações que pude acompanhar como observadora.
Fabiane Sihel foi a primeira de alguns dos profissionais portadores de necessidades especiais que ao longo dos últimos nove anos, seleciono, contrato e treino no escritório diariamente.
Na ocasião da contratação da Fabi, sua seleção inicial foi toda executada pelo departamento de Recursos Humanos visando atender ao Plano Nacional de Cotas (Lei de cotas nº 8.213/91), absorvido pela Organização. Em uma segunda etapa, eu e o antigo coordenador de área naquele ano, realizamos uma conversa para saber se ela possuía os conhecimentos necessários para o cargo em questão.
Para minha surpresa, Fabi se comunicou super bem, falou sobre sua atuação com marketing, apresentou dados da empresa que evidenciaram o quanto ela havia estudado sobre nossa atuação e, na minha inexperiência, fiquei com dificuldade de compreender o grau do problema auditivo da Fabi, pois ela se comunicava muito bem e em nenhum momento me pareceu apresentar dificuldades.
Pois bem, no mesmo mês contratamos outros dois jovens, entretanto, para cargos diferentes e com atuação prevista em outras localidades da cidade. O processo de recrutamento e seleção inicial foi o mesmo realizado anteriormente com Fabiane. No entanto, esses dois candidatos já não apresentaram o mesmo desempenho. Não haviam pesquisado sobre a organização para a entrevista e sequer sabiam sobre o cargo que ocupariam. Informaram que foram chamados por um banco de cadastro e que qualquer vaga que fossem encaixados já os deixaria satisfeitos independente de sua formação profissional.
Meu propósito em expressar algumas comparações sobre o perfil destes dois candidatos com o de Fabiane, gira em torno da importância em contribuir com uma reflexão sobre como a falta de planejamento em contratar profissionais portadores de deficiências, acaba impactando no desempenho destes dentro de uma organização.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, o conceito de deficiência é bastante variado, abrangendo deficiências físicas, auditivas, visuais, mentais e múltiplas.
Sob esse ponto de vista ressalto que, no mercado de trabalho a política de cotas da conta da entrada de candidatos nas mais diversas posições dentro de uma instituição pública ou privada, porém, ela sozinha não atende os desafios para a superação e efetiva Inclusão destes profissionais dentro de um escritório.
Em algumas empresas já é presente a figura de um Assistente Social apoiando diretamente o trabalho de mediação entre a pessoa com deficiência e os demais colaboradores de uma equipe, entretanto, é valido destacar que a maioria das organizações ainda não possui esta figura, cabendo ao gestor da equipe a premissa desta mediação visando defender os valores de igualdade ao profissional com deficiência.
No meu escritório, Fabiane esteve sob minha supervisão direta, os demais em contra partida, ficaram sob gerenciamento de outros profissionais que, por mais que integrassem minha equipe, estavam em territórios da cidade que não me permitiam o acompanhamento diário do desenvolvimento destes em suas funções.
Bom, mas vamos às informações objetivas:
- Fabiane, é portadora de deficiência auditiva;
- O funcionário 2, é portador de deficiência motora congênita severa no quadril;
- O funcionário 3, possui deficiência visual derivada do albinismo;
Os três estavam na mesma faixa etária e, Fabiane e o funcionário 3, possuíam nível de graduação superior quase completa, já o funcionário 2, possuía formação técnica.
Inicialmente os três foram dedicados à cargos administrativos com carga horária reduzida de quatro horas e recebendo semanalmente as demandas a serem executadas.
Agora vamos à realidade: Seria uma falácia afirmar que portadores de necessidades especiais recebem o mesmo tratamento na empresa que pessoas sem essas necessidades. O primeiro desafio para delinear esse ponto e que, sem a menor sombra de dúvidas é uma falha que reforça a desorganização (e falta de interesse) das empresas, espraia a acessibilidade precária no espaço físico/arquitetônico.
Nem sempre as empresas são projetadas de forma inclusiva, constrangendo os funcionários portadores de necessidades especiais, desde seu primeiro dia de trabalho, quando não fornece a este um ambiente seguro, bem sinalizado e com tecnologia em funcionamento para seu acolhimento.
Ex: piso podotátil, comunicação predial em Braille, elevador com espaço para receber cadeirantes, rampas de acesso, telefones amplificados para deficientes auditivos, etc.
Outro grande desafio presente no escritório, tangencia a integração deste profissional complexo e heterogêneo com o contexto sociocultural da empresa. Particularmente, acredito que esse terreno é o de maior fragilidade, podendo causar duros traumas comportamentais e, ainda, embaraços trabalhistas severos a companhias sem foco na gestão humanizada de equipes.
Na nossa central, Fabiane estava comigo e enfrentou os mais complicados obstáculos. Nas primeiras semanas não poderia esperar menos do que as dificuldades para definições de como se daria a comunicação em sala, uma vez que, todos possuímos nossos automatismos e rituais durante o trabalho que exigiram atenção todos os dias como, com o telefone. Este foi um dos protagonistas dos problemas que Fabiane vivenciou por quase todo o período que esteve em nossa equipe. Havia muito preconceito quando ela não atendia o telefone. O fato dela ler lábios com grande habilidade, causava impressão aos colegas de que ela não atendia o telefone porque “não queria”. Com esse dado, passei a fazer reuniões semanais com os componentes do escritório e com as equipes das unidades dos demais territórios da cidade para juntos, alinharmos quais seriam as ferramentas mais apropriadas de tratarmos com ela, extraindo eficiência com o máximo respeito às limitações físicas. Fabiane chegou a encontrar um telefone com amplificadores para deficientes auditivos e, o responsável pela área na época, causou grandes problemas que acarretaram na negativa que recebi para a aquisição do aparelho.
Não foi fácil! Fabiane sofreu com ataques grosseiros. Reclamações sobre sua vontade de conversar e ser incluída quando queria mais demandas e, em minha posição, eu me sentia com a tarefa de conseguir integrar Fabi cada vez mais na execução de nosso departamento. A grande questão é: Fabiane foi de longe uma das melhores funcionárias que já tive. Ela não só era extremamente participativa, como estava sempre pesquisando novas linhas de comunicação, altamente propositiva com novidades ligadas à ampliação do nome da Organização junto ao público jovem.
Observando tudo isso, fui na contramão de muitos gestores de empresas que, retiram “da mão” do colaborador tarefas e metas para serem entregues e, acrescentava semanalmente novas demandas de acordo com a capacidade e vontade de Fabi.
Outro ponto foi o grau de maturidade e tranquilidade que ela apresentava no escritório. Ela passou a pedir feedbacks inclusive para os colegas de sala para poder trabalhar nas mudanças necessárias à sua adaptação, percebendo a limitação de seus colegas.
Depois de um ano e meio de muito treinamento, acolhimento e feedbacks, nos tornamos uma equipe unida, forte, com metas cuja direção caminhava para um ponto comum e, em um ambiente saudável, com trocas para tirar dúvidas, aprendizado e muita confiança.
Infelizmente, os outros dois funcionários nas pontas não tiveram a mesma trajetória. O funcionário 3 foi o primeiro a pedir demissão depois de oito meses de atuação. Por sua fotossensibilidade ocular, ele foi deslocado das funções administrativas para funções operacionais, longe do brilho artificial do computador. Entretanto, nas operações diárias ele não se sentiu à vontade uma vez que, a graduação dele era de ordem burocrática, e ele não queria ficar afastado dos processos administrativos.
O funcionário 2 pediu desligamento depois de quase dois anos. Ele encontrou outra posição em uma empresa com espaço mais acessível, atendendo suas necessidades de locomoção.
Ter a Fabiane em meu time me mostrou que as limitações dificilmente estão nas mãos dos profissionais portadores de necessidades especiais pois, estes, estão sempre um passo à frente. Os mais limitados geralmente são os não portadores, pois, não querem se adaptar. Não entendem porque precisam evoluir seus métodos e estudar para possuírem postura inclusiva e colaborativa. Cabe ao gestor estar diariamente atento à estas sutilezas que surgem no trato diário entre as equipe, pois as demandas burocráticas e de ordem técnica são ensináveis, porém, respeito, é algo individual que você pode e deve falar em todos os feedbacks orientando sua equipe nesse sentido, mas se não houver a noção do coletivo, infelizmente o trabalho correrá o risco de ser amplamente prejudicado.
