Tanto a perda auditiva quanto os distúrbios da cognição estão entre os mais prevalentes acometimentos na faixa etária idosa. 1 Uma vez que a expectativa de vida vem gradualmente aumentando em todas regiões do planeta2, a preocupação tanto com a audição quanto com a funcionalidade cognitiva dos pacientes é também algo crescente não só na literatura médica, quanto no dia a dia dos idosos que gozam de prolongamento também em suas vidas profissionais e sociais. O interesse nesses assuntos não é apenas em cada uma das situações de modo isolado, mas também no que tange à relação entre essas duas condições.
Conforme já descrito na literatura médica, existe um claro impacto da perda auditiva na qualidade de vida dos idosos, comprometendo as relações sociais, saúde mental, habilidades motoras e mesmo o funcionamento de áreas específicas do córtex cerebral.3,4 Considerando, especificamente, a condição neurológica dos pacientes idosos, sabemos que a perda auditiva é considerada um fator de risco diretamente relacionado à prevalência de demência em variados graus entre os idosos.5,6
Segundo publicado recentemente no periódico The Lancet7, a estimativa é que até 2050 tenhamos cerca de 157 milhões de pessoas com o diagnóstico de demência no mundo, sendo que desse total, acredita-se que dois terços se concentrem em países de baixa ou média renda8, como por exemplo, o Brasil. Portanto, é de fundamental importância que conheçamos quais são os fatores protetores ou de risco potencialmente modificáveis para que possamos atuar diretamente na prevenção desses alarmantes números.
Sabemos que a demência e os distúrbios da cognição são condições multifatoriais, os quais estão sob constante reavaliação e readequação quanto ao seu potencial de contribuição no declínio cognitivo. Dentre todos os inúmeros fatores de risco potencialmente modificáveis, como o sedentarismo, baixa escolaridade, depressão, alcoolismo, é a perda auditiva que demonstra ter o papel mais relevante, podendo ser possível notar que a perda de cada 10dB na audiometria está relacionada a um risco aumentado de 1.7 vezes para o desenvolvimento de demência, sendo que a surdez corresponde a 8% dos fatores potencialmente tratáveis e portanto passíveis de prevenção de quadros demenciais, dentre eles a Doença de Alzheimer.9 Ademais, a associação entre perda auditiva e o desenvolvimento da demência não parece existir para aqueles pacientes que fizeram ou fazem uso de aparelhos auditivos.10,11
Habitualmente, nos estudos relacionados ao tema, a definição de perda auditiva segue a determinada pela OMS12, a qual considera presença de déficit auditivo a presença de média tonal superior a 25dB entre as frequências 0,5 a 4kHz ao exame de audiometria tonal. Já a avaliação cognitiva dos pacientes é bastante variável e leva em consideração aspectos individualizados dentro de uma avaliação cognitiva global. É evidente que o diagnóstico de demência envolve mais que a simples aplicação de questionários, entretanto eles servem como excelente ferramenta no rastreio de quadros iniciais ou que possam ainda estar sem diagnóstico apropriado.
Dentre as variadas formas de avaliação cognitiva dos pacientes, aquela mais aplicada pelos autores dos artigos vinculados ao nosso tema é o Mini Exame do Estado Mental, ou Mini-Mental (MEEM).4,13 O MEEM consiste de duas partes, uma envolvendo orientação, memória e atenção, com pontuação máxima de 21 pontos e, outra acerca de habilidades específicas, pontuando até 9 pontos. Totalizam assim um escore possível de 30 pontos e quanto maior o valor, tanto melhor será o desempenho cognitivo.14 O teste apresenta, entretanto, alguma limitação a depender do nível de escolaridade do entrevistado e, portanto, alguns ajustes devem ser considerados na avaliação dos dados em relação a esse ponto.15,16
Já para a avaliação de qualidade de vida dos pacientes, em especial para aqueles submetidos a intervenções otorrinolaringológicas, o Glasgow Benefit Inventory (GBI) e o Glasgow Health Status Inventory Questionnaire (GHSI) apresentam ótima aplicabilidade.17,18,19 Trata-se de um questionário composto por 18 perguntas para avaliar como a intervenção a que o paciente foi submetido impactou sua condição de saúde nos aspectos orgânicos, mentais e sociais. Antes de ser aplicado, basta que se adapte a intervenção em questão e inclua seu nome em cada pergunta.
O uso de próteses auditivas (AASI) como terapêutica de reabilitação auditiva é um consenso e a melhora do desempenho cognitivo em idosos naqueles que as utilizam já foi demonstrado na literatura.5,10,20,21 Entretanto, boa parte dessa população idosa surda avançará em seu grau de perda auditiva ao ponto que não mais será eficaz o uso de AASI comum, tornando-se então, candidatos ao implante coclear. A idade, portanto, não deve ser fator limitador para a indicação ao implante coclear.22
Evidentemente, uma das grandes preocupações envolvendo a cirurgia em idosos é o risco anestésico de um procedimento. Visando mitigar essa condição, estudo conduzido pela nossa equipe no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná e no Hospital Paranaense de Otorrinolaringologia verificou a viabilidade de realização da cirurgia de implante coclear sob anestesia local e sedação, em vez da mais comumente utilizada anestesia geral.24 Esse mesmo trabalho, nossa tese de doutorado, trouxe à luz a possibilidade, tanto quanto a necessidade, de garantir a segurança do paciente idoso e comprovou ser possível essa condução sem prejuízo ao paciente e tampouco à condução cirúrgica. Além disso, independentemente do tipo de anestesia utilizada, os resultados eletrofisiológicos e auditivos após a implantação são equivalentes, podendo-se então, com segurança, lançar mão dessa modalidade anestésica para os idosos submetidos ao implante coclear. 23,24
CONCLUSÕES
O implante coclear é sabidamente uma das grandes maravilhas da medicina, e como tal, pode e deve ser usado para a reabilitação auditiva em idosos, sem limite máximo de idade, bastando que a condição clínica seja adequada e que o status cognitivo e de apoio familiar sejam compatíveis com a agenda que será criada na vida do idoso, pelas inúmeras terapias fonoaudiológicas e mapeamentos do implante coclear que serão necessários após a cirurgia. Havendo este entendimento por parte da família e do paciente, o implante coclear em idosos é uma opção factível e deve ser indicado nos casos em que os aparelhos auditivos convencionais não estiverem dando os resultados esperados, conforme os protocolos tradicionais de indicação da cirurgia.
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