A fonoaudiologia e a surdez têm uma história de longa data. Inicialmente, conhecida como uma profissão que colocava o sujeito dentro de normas exigidas pela sociedade, a fonoaudiologia teve como primeira abordagem o oralismo. O oralismo propõe que o sujeito surdo escute de alguma forma e foca na linguagem oral, ou seja, é proposto que a pessoa desenvolva estratégias para falar como o ouvinte (pessoa com audição dentro da normalidade). Nesta abordagem não era permitido o uso das mãos para realizar qualquer tipo de comunicação.
Por volta dos anos de 1980, alguns estudiosos trouxeram a Comunicação Total para o Brasil (MOURA, BEGROW, CHAVES, AZONI, 2021). A Comunicação Total (CT) permitia que durante a reabilitação auditiva e de fala fossem introduzidos alguns sinais. A CT não tem regras gramaticais como nas línguas de sinais. Essa nova abordagem, de forma contraditória, trouxe um peso de que língua de sinais era só para aqueles que não conseguiram desenvolver a língua, com isso, vários sujeitos surdos ficaram com estigma de que “não são capazes” ou “falharam” em sua comunicação , por não ser de forma oral.
Neste momento, proponho uma reflexão: Porquê as pessoas com surdez devem adequar-se às normas sociais dos ouvintes? Será adequado escolher apenas uma forma de comunicação em meio a tanta diversidade? Quantas línguas e formas de comunicação o ser humano é capaz de aprender?
Todo esse contexto histórico ainda traz consequências para os sujeitos surdos. Há reflexos na maneira como são vistos, como são tratados, como se inserem em uma sociedade, muitas vezes capacitista. A relação de poder entre as línguas do país é nítida quando colocam as pessoas que falam a língua portuguesa em um lugar de privilégios e as pessoas que se comunicam por língua de sinais, dialetos indígenas, etc. em lugar de inferioridade. Quais são as consequências reais causadas por essa barreira linguística?
No século XXI a fonoaudiologia bilíngue ficou mais presente entre os estudiosos no Brasil. Essa abordagem abrange duas línguas: a língua brasileira de sinais, como primeira língua e a língua portuguesa. O raciocínio realizado visa evitar que bebês e crianças surdas passem por privação linguística e tenham prejuízos irreversíveis. A língua de sinais é considerada a língua materna do surdo e traz um conforto já que é aprendida por meio da visão e habilidades motoras. Assim, a criança surda tem a oportunidade de adquirir conhecimentos de mundo como qualquer outra criança ouvinte. Com a aquisição dessa língua na primeira infância, a criança pode se comunicar no mesmo nível linguístico que uma criança ouvinte da mesma idade.
Ao mesmo tempo, a criança surda pode adquirir uma tecnologia auditiva (aparelho de amplificação sonoro individual ou implante coclear, por exemplo) e assim terá a língua portuguesa como segunda língua. Ela, se for opção da família, fará habilitação/ reabilitação auditiva usando a língua de instrução para comandos, explicações, orientações e elogios. Ou seja, é possível fazer a criança compreender em língua de sinais os contextos do seu próprio treinamento auditivo. Desta forma, a criança será capaz de entender os propósitos da clínica e a terapia fonoaudiológica (e outras terapias se houver necessidade), o que vai fazer muito mais sentido.
Muitas vezes o raciocínio das pessoas é: “não vou aprender língua brasileira de sinais (libras) porque não preciso”. Como se fosse uma decisão individual. Porém, como seria se o pensamento fosse: “vou aprender libras porque vou poder conversar, conviver, trabalhar com pessoas que se comunicam melhor assim”? Quantas mudanças aconteceriam se todos parassem de se olhar e pensassem na real acessibilidade (que abrange muito mais que a libras)?
Temos estudos que mostram que a língua oral pode se desenvolver com mais facilidade na abordagem bilíngue exatamente porque a criança vê sentido e significado no que ela está falando e não está ouvindo de maneira tão clara. Por vezes, a sociedade ainda coloca todas as expectativas nas tecnologias auditivas, acreditando na possibilidade de que elas sozinhas promovessem a complexa construção e desenvolvimento de uma língua.
Além disso, algumas pessoas parecem não compreender que as perdas auditivas possuem tipos e graus diferentes. Sabe-se que existem a perda auditiva pré-lingual (antes da aquisição da língua oral) e a perda auditiva pós-lingual (acontece depois da aquisição da língua falada). Uma pessoa que adquiriu a língua portuguesa antes de perder a audição e desenvolveu a memória auditiva tem mais chances de se adaptar a tecnologia, ter a qualidade de fala próxima ao ouvinte, etc. Cada um tem suas especificidades e precisam ser consideradas.
O fonoaudiólogo que aprende libras amplia a oportunidade para as famílias surdas terem acesso às orientações e aos relatos sobre a sessão de terapia fonoaudiológica do filho. Não apenas quando a queixa é a surdez, mas no contexto geral, pois a criança pode ter queixas de voz, leitura e escrita, disfagia, atraso de fala e etc. Essa oportunidade de comunicação direta com a família por meio de Libras, traz luz a necessidade real de acessibilidade como um direito de todos os cidadãos.
Como qualquer outro planejamento terapêutico é necessário que a família participe ativamente colocando as orientações e atividades em prática em casa, aprendendo libras e tirando dúvidas. Pois, é nesse espaço que a criança surda tem que se sentir acolhida e passa a maior parte do tempo.
Quando se trata de famílias ouvintes com filhos surdos, sabe-se que há barreiras e tabus ao discutir sobre o bilinguismo. O desejo pela “normalização” das características do filho pode trazer o sentimento de luto às famílias e portanto todos os envolvidos requerem cuidado e apoio. A presença de um psicólogo auxilia no processo de ajuste e alinhamento das expectativas e no desempenho dos seus papéis em sociedade.
A Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia criou o Comitê de Língua de Sinais e Bilinguismo para Surdos (MOURA, BEGROW, CHAVES, AZONI, 2021) em que participo de reuniões periódicas a fim de discussões científicas com fonoaudiólogos bilíngues do país todo. Ademais, também oferece suporte para familiares, pessoas surdas/com deficiência auditiva, intérpretes de libras, educadores e outros usuários ouvintes. O trabalho é voltado para evitar alterações de linguagem na criança surda, intervenção no ambiente educacional e atuação do fonoaudiólogo.Acredito que tais avanços sejam uma oportunidade para reescrever a história da fonoaudiologia, onde o contexto bilingue venha a trazer muito mais empatia, respeito e evidências científicas.

Referência Bibliográfica:
MOURA MC, BEGROW DV, CHAVES AD, AZONI CAS. Fonoaudiologia, língua de sinais e bilinguismo para surdos. CODAS 33 (1). 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-1782/20202020248. Acesso em: 17/08/2022.