A surdez acomete milhares de pessoas, crianças e adultos, ao redor do mundo e com o avanço das áreas de medicina, engenharia e tecnologia foi possível fornecer opções para que o sujeito tenha acesso ao mundo dos sons mesmo após ser diagnosticado com uma perda auditiva. Dentre os dispositivos mais comuns que podem ser escolhidos para uso estão os aparelhos de amplificação sonora individual (AASI) e o implante coclear (IC), sendo este realizado por meio de uma cirurgia e com diversos critérios de indicação que são avaliados por uma equipe multiprofissional para favorecer o prognóstico.
O IC é um dispositivo que tem o objetivo de fornecer estímulos elétricos ao nervo auditivo e com isso permitir que o som percorra seu caminho até o córtex auditivo, fornecendo estimulação de regiões cerebrais relacionadas às habilidades auditivas como atenção, detecção, discriminação, reconhecimento e compreensão, todas essenciais para o desenvolvimento de fala e linguagem.
Existe muita expectativa das famílias, e até mesmo dos profissionais, para que uma criança desenvolva a fala a partir do uso do IC, porém, alguns fatores que favorecem tal desenvolvimento nem sempre são priorizados.
O tempo de uso diário é um dos fatores que mais afeta o benefício que o sujeito pode ter com os dispositivos eletrônicos, afinal, quanto mais experiências auditivas, melhor para o desenvolvimento da criança. Contudo, a adaptação realmente pode ser difícil e desafiadora para a família, a orientação fonaudiológica é essencial para ensinar como os pais e cuidadores podem criar métodos e estratégias para que a criança possa se acostumar com a sensação física da parte externa do IC, chamada processador, em sua orelha e claro, com o som.
A terapia fonoaudiológica somada ao uso efetivo dos dispositivos é recomendada desde o momento do diagnóstico audiológico e é um dos critérios de indicação para a realização da cirurgia do IC, afinal, este é apenas um dispositivo com capacidade de fornecer estimulação, a interpretação e compreensão dos estímulos que passarão a ser recebidos precisa ter um significado. O fonoaudiólogo durante as sessões de terapia criará estratégias para estimular diferentes habilidades auditivas e de linguagem para que a criança passe a conhecer e interagir com o mundo sonoro novo que se apresenta.
Entretanto, as sessões, que costumam ser semanais e ter duração entre 35 a 50 minutos, representam uma pequena porcentagem da semana da criança, sendo necessário a ajuda dos pais e professores para que as funções aprendidas em terapia sejam aplicadas em outros ambientes e situações cotidianas. A orientação para que isso ocorra de forma efetiva é tão importante quanto as estratégias realizadas com a própria criança.
Os fatores mencionados são vastamente discutidos pela literatura nacional e internacional e têm sido cada vez mais divulgados pelos profissionais em suas redes sociais, mas também em seus consultórios, como parte da orientação familiar. Mas, e quando tudo isso está alinhado e mesmo assim não ocorre o desenvolvimento de fala? Ou este apresenta ser aquém do esperado para a idade? Vamos refletir sobre por que isso acontece e quais as opções viáveis.
É importante lembrar que a surdez tem diferentes etiologias e ocorre em diferentes faixas etárias com pessoas em diferentes situações familiares, sócio econômicas e emocionais, as quais influenciam no desenvolvimento da criança. Por este motivo a avaliação multiprofissional em um centro auditivo é importante, para adequar as expectativas da família frente aos resultados com o IC, em cada caso.
Em crianças com surdez pré lingual até os dois anos de idade existe uma maior probabilidade de desenvolvimento de fala a partir do acesso aos sons com uso do IC, pois nesta fase ocorre o maior período de plasticidade neuronal, que está relacionado com a capacidade da criança em receber, processar, reter e expressar novos aprendizados. Após esse período ficará mais difícil para que o desenvolvimento de fala ocorra plenamente e nestes casos é preciso fornecer mais do que a abordagem auri oral (ou seja, aquela realizada apenas por meio dos sons) em terapia fonoaudiológica.
É nestes casos que a língua de sinais pode ser estimulada como uma opção viável para que a criança possa se comunicar plenamente. Com isso é importante afirmar que existirão casos de crianças usuárias de IC que fazem uso da língua de sinais como complemento à fala, ou até mesmo, que não falam e utilizam a língua de sinais como sua primeira língua, e todas merecem e devem ser incluídas nos ambientes que frequentam, sem discriminações ou julgamentos.
Sabe-se que existem polêmicas em relação à comunidade surda no que diz respeito a aceitação do uso de dispositivos eletrônicos, mas devemos divulgar que, ao fazer uso dos dispositivos a criança ainda poderá ter a opção pelo uso da língua de sinais, e até mesmo em alguns casos esta será, exclusivamente, sua forma de comunicação. O contrário não é verdadeiro, pois caso a criança cresça sem nenhum tipo de estimulação auditiva acabará não desenvolvendo habilidades auditivas no período de maior plasticidade neuronal, e caso enquanto adulta ela opte por fazer uso do IC, este não trará o mesmo benefício e resultado pois as fibras neurais do nervo auditivo e córtex auditivo já não serão tão excitáveis quanto na infância.
Ao decidir pelo uso ou não de dispositivos eletrônicos, pela inserção ou não da língua de sinais, não podemos ignorar ou minimizar o fato de que o acesso aos sons da fala e sons ambientais favorece, não somente o ato motor da fala, mas também a interação com o meio ambiente e com o outro.
Os sons que ocorrem dentro do cotidiano como, por exemplo, a diferença entre o som de uma panela e o som do chuveiro associado às suas funções, comer e tomar banho, traz para a criança a compreensão de como o meio funciona e qual seu papel neste cenário. A interação com o outro por meio dos sons faz com que ela diferencie a voz do pai e da mãe, e com isso desenvolva aspectos emocionais como afeto e paz ao ouvir a voz da mãe cantando, e até mesmo consiga compreender as diferenças de emoções quando a mesma voz muda de entonação com a palavra não em determinado momento.
O mundo do som também permite o desenvolvimento global de linguagem, cognição e emoção. Devemos considerar que estes fatores também fazem parte da construção da identidade.
Portanto, é importante ter cuidado na tomada de decisões, evitando ter atitudes levianas e até mesmo negligentes ao não fornecer à criança todas as ferramentas necessárias para o seu desenvolvimento, incluindo a língua de sinais associada ao implante coclear.
O mesmo deve ser considerado pelos profissionais de saúde que a acompanham, principalmente fonoaudiólogos da reabilitação auditiva, os quais, em sua grande maioria, não são fluentes na língua de sinais para inserí-la em seu planejamento terapêutico. Porém, a limitação do profissional não pode se tornar uma limitação para a criança. Devemos encorajar a família a procurar outros atendimentos, cursos, aplicativos e demais opções para que aprendam a língua de sinais. Devemos, inclusive, sugerir o contato com a comunidade surda e suas respectivas perspectivas.
O objetivo final do IC realmente é favorecer o desenvolvimento de linguagem oral, mas caso isto não ocorra ou caso a criança tenha outras comorbidades associadas, como por exemplo diagnóstico do espectro autista, paralisia cerebral, entre outros, o olhar do fonoaudiólogo deve ser direcionado para aquilo que a fonoaudiologia defende: a comunicação.
É importante lembrar que, para o desenvolvimento cognitivo e para que uma pessoa se torne um membro ativo de nossa sociedade, a comunicação é a base que fará com que isso torne-se possível. Portanto, toda forma de comunicação é válida e deve ser respeitada.
