Setembro Surdo ou Azul é o marco histórico das lutas, das barreiras comunicativas, do reconhecimento linguístico e das inúmeras conquistas da comunidade Surda no Brasil e para além do Brasil. Setembro Azul é um legado, para que nós, seres humanos, nunca esqueçamos da valorização de todo um construto de uma cultura Surda, identidade Surda, Política Surda, Língua de Sinais e comunidade Surda. Para além do reconhecimento da Língua de Sinais como meio legal de comunicação e expressão para a comunidade Surda, no dia 30 de setembro é comemorado o dia internacional do Surdo e é também o dia internacional do profissional Tradutor e Intérprete de Libras.
Todo mundo sabe (ao menos deveria) de que a Língua Brasileira de Sinais é reconhecida por Lei sob nº 10.456/2002 e o Decreto 5.626/2005, que dispõe que a Libras é utilizada como um meio de comunicação e expressão pela comunidade Surda do Brasil – envolvendo as pessoas Surdas e as pessoas ouvintes que participam do diálogo e que se comunicam em Libras. No Brasil, segundo os dados do IBGE (2010), apenas 5% da população é considerada como pessoa surda, o que corresponde a uma porcentagem com mais ou menos 10 milhões de pessoas, dos quais apenas 2,7 milhões, possuem surdez profunda e não escutam nada. Outros dados estatísticos que foram publicados pelo Portal Geledes (2021), mostram que apenas 1,8% das pessoas com alguma dificuldade de audição, desde o grau leve até o moderado, dizem conseguir se comunicar em Libras. Enquanto outros 3% com perda moderadamente severa ou severa, conseguem se comunicar em Libras. Agora, pautada nessa estatística, e para você que está do outro lado da tela – seja você uma pessoa ouvinte ou surda, eu te retorno e pergunto, quantos ouvintes sabem se comunicar em Libras? Pouquíssimos.
Se por exemplo, há 10 anos atrás, alguém me dissesse que hoje, em pleno 2023, eu tivesse a oportunidade de escrever um artigo para o blogcocleativa, eu jamais iria acreditar, porque há 10 anos atrás, eu era bem leiga, eu sequer sabia que existia um meio de comunicação e expressão dentro da comunidade Surda, quem dirá que existia a profissão de tradutor e intérprete de Libras. A minha trajetória enquanto membro da comunidade Surda, começou de maneira singular e aos poucos fui me aprimorando em cursos, congressos, oficinas, encontros e até mesmo em duas graduações. Sempre mantendo o contato diário com a comunidade Surda e as atualizações constantes em cursos, oficinas, palestras e aprimoramentos. Quando conheci pela primeira vez a Libras, fiquei muito encantada com o balançar das mãos e as expressões faciais que acompanhavam o diálogo. Foi de fato o amor à primeira vista, mas nunca passou pela minha cabeça, que eu fosse trabalhar com Libras e que dali alguns anos, eu fosse me tornar intérprete de Libras.
É explícito que com a criação da Lei de Libras nº 10.436/2002, do Decreto nº 5.626/2005 e por fim, a Lei do Tradutor e Intérprete de Libras nº 12.319/2010 que regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete de Libras, nota-se que tem-se tido um avanço da inserção do Surdo em nossa sociedade, respeitando-o como um sujeito íntegro e que se comunica através da Libras, garantindo o seu direito de ter um Intérprete de Libras intermediando entre a comunicação. É comum quando as pessoas me perguntam se eu tenho algum familiar surdo, se é difícil atuar na área, como é o percurso para ser intérprete de Libras, se é igual a tradução em Libras, enfim, com base na minha experiência ao longo dos últimos dez anos e trazendo um compilado das perguntas mais frequentes, resolvi compartilhar aqui no blogcocleativa, alguns esclarecimentos para que mais pessoas possam ter acesso e quem sabe, se inspirarem e futuramente se tornarem também intérprete de Libras.
Uma das perguntas mais frequente de todas as que eu já recebi e ainda recebo das pessoas, é a de que se é preciso ter algum familiar surdo ou ser surdo para atuar na área de Intérprete de Libras, e a verdade é que não necessariamente, mas ser surdo ou ter algum familiar com surdez, também não impede a pessoa de poder atuar na área de intérprete de Libras. Por exemplo, eu sou ouvinte e faço parte da comunidade Surda, mas eu não tenho nenhum familiar surdo. Eu tenho amigos que são surdos e que atuam na área de intérprete de Libras, assim como também tenho outros amigos que são filhos de pais surdos (os CODAS) e que atuam como intérpretes de Libras. Então, não existe um padrão sobre ser surdo, ter familiar surdo ou ser ouvinte. Eu acredito que o importante é a pessoa ter interesse na Libras, ter uma fluência na língua portuguesa, ter contato frequente com a comunidade Surda, com os estudos da linguística da Língua de Sinais e se aprimorar para ser intérprete de Libras. E sempre digo que qualquer pessoa que tenha interesse na área, pode atuar como intérprete de Libras.
Existe a possibilidade de cursar algum módulo de Libras, de interpretação e tradução em Libras, até mesmo uma graduação em alguma licenciatura ou em outra área específica e após a graduação, a pessoa pode cursar uma pós graduação em Libras e seguir estudando, porque a língua é viva e se modifica constantemente.
Segundo o Decreto nº 5.626/2005, no capítulo V, da formação do tradutor e intérprete de Libras – Língua Portuguesa:
“Art. 17. A formação do tradutor e intérprete de Libras – Língua Portuguesa deve efetivar-se por meio de curso superior de Tradução e Interpretação, com habilitação em Libras – Língua Portuguesa.
Art. 18. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, a formação de tradutor e intérprete de Libras – Língua Portuguesa, em nível médio, deve ser realizada por meio de:
I – cursos de educação profissional;
II – cursos de extensão universitária; e
III – cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior e instituições credenciadas por secretarias de educação.
Parágrafo único. A formação de tradutor e intérprete de Libras pode ser realizada por organizações da sociedade civil representativas da comunidade surda, desde que o certificado seja convalidado por uma das instituições referidas no inciso III.
Art. 19. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, caso não haja pessoas com a titulação exigida para o exercício da tradução e interpretação de Libras – Língua Portuguesa, as instituições federais de ensino devem incluir, em seus quadros, profissionais com o seguinte perfil:
I – profissional ouvinte, de nível superior, com competência e fluência em Libras para realizar a interpretação das duas línguas, de maneira simultânea e consecutiva, e com aprovação em exame de proficiência, promovido pelo Ministério da Educação, para atuação em instituições de ensino médio e de educação superior;
II – profissional ouvinte, de nível médio, com competência e fluência em Libras para realizar a interpretação das duas línguas, de maneira simultânea e consecutiva, e com aprovação em exame de proficiência, promovido pelo Ministério da Educação, para atuação no ensino fundamental;
III – profissional surdo, com competência para realizar a interpretação de línguas de sinais de outros países para a Libras, para atuação em cursos e eventos.
No Art. 4, da lei nº 12.139/2010 que regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – Libras, sobre a atuação do intérprete de Libras:
“Art. 4o A formação profissional do tradutor e intérprete de Libras – Língua Portuguesa, em nível médio, deve ser realizada por meio de:
I – cursos de educação profissional reconhecidos pelo Sistema que os credenciou;
II – cursos de extensão universitária; e
III – cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior e instituições credenciadas por Secretarias de Educação.
Parágrafo único. A formação de tradutor e intérprete de Libras pode ser realizada por organizações da sociedade civil representativas da comunidade surda, desde que o certificado seja convalidado por uma das instituições referidas no inciso III.”
Outra pergunta bastante comum é se a tradução em Libras é o mesmo que a interpretação em Libras e a verdade é que não, são bem distintas. O tradutor em Libras é alguém que traduz algum texto, música ou poema da língua portuguesa para a Libras ou em escrita de Sinais (ou mais conhecido SignWriting) e vice-versa.
Já o intérprete de Libras, é quem por exemplo, está interpretando simultaneamente um diálogo, uma palestra, uma reunião, algo na modalidade auditivo-oral para a modalidade visuoespacial ou vice-versa, da modalidade visuoespacial para auditivo-oral. Eu, por exemplo, estou atuando como Intérprete de Libras e professora de Libras.
Outra pergunta frequente é onde o intérprete de Libras pode atuar, a verdade é que é uma área bastante ampla. Então, o intérprete de Libras, por ser o profissional da área da comunicação e intermediar entre a comunidade ouvinte e a comunidade Surda e com o objetivo de destravar a barreira comunicativa entre as pessoas, pode atuar desde os locais públicos quanto os lugares privados. E vale lembrar que o intérprete de Libras, é um profissional que tem sido muito requisitado em locais educacionais, em órgãos administrativos, em treinamentos, em eventos midiáticos, em comerciais, em consultas médicas, em reuniões, em campanhas políticas e etc.
Outra pergunta é como ser intérprete de Libras e por onde começar. Perante esta dúvida, eu oriento que comece pelo básico, porque é essencial começar pelo curso básico de Libras e com o tempo, ir se aprimorando aos poucos. É importante estar em contato com a comunidade Surda, assim como entender sobre a legislação, a acessibilidade e a diversidade.
Lembra, que eu comentei anteriormente que a língua é viva e que se aprimora ao longo do tempo? Então, a Libras, assim como outra língua oral, por exemplo, o inglês, se você perder a constância do estudo e da prática com a comunidade falante, você esquece. Por isso, na minha opinião, faz-se necessário que o intérprete de Libras esteja sempre se qualificando e se especializando na área em que pretende atuar na interpretação. Eu por exemplo, atuo na área da educação e da saúde, então eu tenho me aprimorado cada vez mais nas duas áreas.
Por fim, e não menos importante, as pessoas me perguntam como eu me sinto atuando na área e qual a importância do intérprete de Libras dentro da sociedade. Primeiramente eu me sinto muito privilegiada em estar atuando como intérprete de Libras, pra mim é muito gratificante saber que posso contribuir com a visibilidade linguística, mediando entre a sociedade e tornando a comunicação mais eficiente, acessível e inclusiva para a comunidade Surda. Confesso que é um desafio diário, porque por não ser a minha língua materna, eu constantemente preciso me atualizar quanto aos sinais, quanto a linguística da Libras, e quanto ao regionalismo. É um desafio também por envolver a emoção, é importante transmitir a emoção ao que está sendo interpretado ou traduzido. Então, envolve muito da nossa parte ética, do nosso conhecimento e da nossa empatia. Mas é um trabalho extremamente gratificante, surpreendente, desafiador e satisfatório.
Já sobre a importância do profissional intérprete de Libras é a de justamente tornar a comunicação mais acessível e eficiente, garantindo e assegurando a comunidade Surda, para além do seu direito ao acesso à informação, mas o de também valorizar todo um construto de uma cultura Surda, da identidade Surda, da Língua de Sinais e da comunidade Surda.

REFERÊNCIAS
Brasil. Lei nº. 10.436, de 22 de abril de 2002. Língua Brasileira de Sinais, Libras.
Publicada no Diário Oficial da União em 24 abril de 2002. [Acesso em janeiro de 2023].
Brasil. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436
de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o
Art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Publicada no Diário Oficial da
União em 22 de dezembro de 2005. [Acesso em janeiro de 2023].
Brasil. Lei nº. 12.319, de 1 de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Esta Lei regulamenta o exercício da profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. [Acesso em janeiro de 2023].
G1 – O portal de notícias da Globo. População brasileira é composta por mais de 10
milhões de pessoas surdas. [Acesso em janeiro de 2023]. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/sul-do-rio-costa-verde/especial-publicitario/ubm/conhecimento-transforma/noticia/2020/02/12/populacao-brasileira-e-composta-por-mais-de-10-milhoes-de-pessoas-surdas.ghtml
GELEDES – IBGE confirma: surdez não é sinônimo de Libras. Por Lak Lobato, do Desculpe, Não Ouvi! 31/08/2021 [Acesso em janeiro de 2023]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/ibge-confirma-surdez-nao-e-sinonimo-de-libras/
FEBRAPILS – Dia do TILS: 26 de Julho ou 30 de Setembro? [Acesso em janeiro de 2023]. Disponível em: https://blog.febrapils.org.br/dia-do-tils-26-de-julho-ou-30-de-setembro/#:~:text=%E2%80%93%20A%20data%20mundialmente%20comemorada%20em,e%20grega%20para%20o%20latim.A HISTÓRIA DO SETEMBRO AZUL OU SETEMBRO SURDO. [Acesso em janeiro de 2023]. Disponível em: https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/a-historia-do-setembro-azul-ou-setembro-surdo/
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